HOMENS DE MÚSCULOS DE FERRO (com vídeo)



Não haverá melhor exemplo para demonstrar a qualidade e energia dos Bujoenses do que lembrar a memória de  todos aqueles que seguindo as pisadas do Zé Russo, filho da tia Zulmira, partiram um dia para Lisboa em busca de melhor vida, deixando a sua aldeia, amigos e família, com a esperança estampada no rosto e a saudade no coração. Destino: Lisboa e logo em seguida o Cais de Xabregas, onde eram desmantelados os velhos e cansados barcos destinados à sucata.
A falta de trabalho nos campos, com exceção da época das vindimas, da apanha da azeitona ou no amanho das videiras (poda, escava, pulverização, etc) e os salários baixos e sem pagamento à segurança social, levaram muitos dos nossos conterrâneos a emigrar sobretudo para o Brasil, depois França e Alemanha, restando Lisboa para alguns que eram mais relutantes em sair do País.
Nessa árdua, difícil e até perigosa tarefa, foram vários os Bujoenses, de músculos rijos como o ferro, possantes e valentes, com uma vontade indómita de trabalhar, que deixaram marca nessa vida tão dura, destruindo o velho para que se produzisse por essas siderurgias mundo além, o novo ferro e aço que fizeram avançar o Mundo! Muito suor, algumas lágrimas e sangue de gente de Bujões marcou esse avanço naquele velho cais de Xabregas, hoje bem diferente e modernizado e onde essa azáfama de cortar à mão ou à marreta, desmontando até ao último parafuso ou solda, a chapa velha e ferrugenta de barcos de média e grande dimensão, já não existe mais. Durante meses e até anos seguidos,  era um fervilhar contínuo ao proceder-se ao transporte de milhares e milhares de toneladas de ferro velho carregado em camions e barcos para o seu destino final, num forno qualquer, do velho criando novo.
E nada mais escrevemos sem antes lembrar aqui o nosso conterrâneo (Zé Estica), marido da tia Engrácia, que por virtude das poeiras engolidas constituídas por restos de ferro e chumbo, apanhou uma doença fatal, o saturnismo, acabando os seus dias em sofrimento, mas ainda hoje recordado como um exemplo de dedicação e de companheirismo. Agora andará certamente nos barcos, mas em passeios por esse Paraíso além e onde já se encontram muitos outros companheiros que trabalharam a seu lado e quanto eles terão para contar!
Entretanto, seguindo as pisadas do Zé Russo, que acabaria por emigrar para o Brasil onde faleceu anos mais tarde, o Zé Cardeal, filho da tia Maria Cardeal ou Maria do correio, ainda jovem e recém casado com a tia Eufémia, aí veio ele no supersónico comboio-correio que saía da Régua às três e que chegava a Santa Apolónia no dia seguinte, às sete da manhã! Os bancos de madeira do comboio, da 3ª classe, eram desde logo o primeiro batismo e amostra das dificuldades que esse caminho iria trazer a todos.


Tio ZÉ CARDEAL


Não tardaria muito para que viesse ao seu encontro o primo António Amaral, conhecido por Sureca, e filho da tia Maria Paula. Este, frequentando a tropa em Lisboa, onde esteve em diversos quartéis, foi escolhido para impedido do Coronel de Cavalaria, João Carlos Craveiro Lopes, filho do Presidente da República, General Craveiro Lopes e aproveitava os tempos livres e folgas para ganhar uns escuditos junto do seu primo e amigo, que antes de ingressar no desmantelamento dos barcos envelhecidos por tanto percorrerem os mares, trabalhou em diversos sítios, como na construção civil, e até nas pedreiras da prisão de Monsanto, pois vontade para ganhar a vida e ajudar a família não lhes faltava a ambos, nem a nenhum de todos aqueles que vieram de Bujões.
Quer um, quer outro, acabariam por deixar a sua aldeia de uma forma curiosa e demonstrativa de que a solidariedade não é palavra vã para os Bujoenses. O Zé Cardeal saindo em defesa do tio Germano Palaio, juntamente com outros Bujoenses, por causa de uma disputa relacionada com o gado (ovelhas) em que os de Abaças queriam impor a sua força, viu-se envolvido na justiça por ele e muitos outros conterrâneos terem saído em defesa daquele conhecido Bujoense, e logo que a disputa acalmou, achou melhor rumar a Lisboa e procurar melhor vida. Já o primo António, depois de sair da tropa e após algum tempo de namoro, casou com a Assunção, de Vila Seca, que era irmã da tia Mana, que era nossa vizinha no Quinteiro e mulher do tio David Comba. O António foi morar nessa povoação de Vila Seca, terra da mulher. Numa festa irrompeu um barulho com um de Bujões a ser agredido por pessoas daquela aldeia. Saltando em defesa do seu conterrâneo, pois tentar bater num de Bujões é como tentar bater em todos, o António nem quis saber que era vizinho dos que armaram a zaragata, e juntou-se aos de Bujões nesse enfrentamento. Não deixou de lhe sair cara a ousadia porque não deixou de haver quem alimentasse o desejo de vingança, porque no geral entendiam que se ele casara com uma mulher de Vila Seca tinha de estar ao lado daqueles que eram dessa terra e não dos que eram da terra onde ele nascera! Coisas de rivalidades que já não se usam hoje em dia.
ANTÓNIO AMARAL " O Sureca"

Para evitar dissabores, que não temia, mas que seriam certamente complicadas, achou melhor rumar também a Lisboa, pois já trabalhara em tal profissão e a amizade com o primo Cardeal resolveria o resto.
De facto, há mais de 50 anos que ainda por aqui andam e andarão, tendo constituído ambos famílias lindas e numerosas. A tia Eufémia infelizmente já partiu, deixando uma saudade imensa em todos que a conheceram e sabemos que o Cardeal é agora bem acompanhado pela Ana, que o estima e apoia nos caminhos nem sempre fáceis da velhice.
Os dois primos vivem no mesmo bairro, a poucos metros de distância, e não esquecem a ajuda que o então Padre Germano lhes deu para que a Câmara lhes atribuísse uma casinha, deixando os locais onde viviam sem qualquer tipo de conforto e já moralizados com a presença das mulheres, companheiras fantásticas que se esforçaram e tanto sofreram para tratar dos maridos e filhos, alguns dos quais já casaram e fizeram deles avós orgulhosos!
Apesar disso, não esqueceram nunca a sua aldeia natal e sempre que podem lá vão eles matar saudades e recordar velhos tempos, embora sejam cada vez menos aqueles que foram seus companheiros daqueles tempos difíceis de criança e de juventude. Mas os ex-companheiros de trabalho continuam a considerá-los amigos, como não podia deixar de ser.

A TASCA DO ANÍBAL
 
O ANÍBAL NA SUA TASCA





Um dia, com 16 anos, também eu bati à porta da Tasca do Aníbal, na Calçada da Boa Hora, ali para os lados da Junqueira e Ajuda. Ajuda, isso mesmo, que eu buscava e encontrei. E durante dois anos ali aprendi o valor da solidariedade e de como se ultrapassavam as dificuldades, o que muito me ajudou na minha vida futura. Gratidão, é uma palavra bonita, mas que muitos esquecem facilmente. Pois eu considero-me feliz por estando agora também no clube da terceira idade, poder recordar essa gente maravilhosa de Bujões, que vivia na Tasca do Aníbal, ou em barracas nos bairros que proliferavam por todo o lado, Tasca essa onde eu comia e pernoitava, convivia e estava sempre pronto para receber um conselho amigo, em especial por parte daqueles dois primos, pioneiros, homens de personalidades distintas, mas sempre disponíveis para ajudar quem aparecesse. Comigo isso sucedeu, mesmo com o emprego diferente que tinha, e nunca esquecerei o quanto lhes estou grato.
E tantos e tantos que apareceram, vindos de Bujões, e que logo arranjavam trabalho naquela vida difícil e rude, mas onde todos eles foram sempre tidos como gente do melhor e trabalhadores de corpo e alma. Bujões pode e deve ter respeito e orgulho por todos aqueles, e foram muitos, que nesta cidade de Lisboa demonstraram a força e o carácter de gente simples mas de coração enorme!
A Tasca tinha uns bancos, umas mesas, e os pipos ( um deles só para o Aníbal e para os amigos , como nós) e uns petiscos de pouca qualidade para acamar o carrascão que vinha lá das bandas do Cartaxo.




Carrascão do Cartaxo



Espaço velho, dispunha de uma " cozinha" interior do tipo hotel de 10 estrelas, onde cozíamos as batatas e o bacalhau ou se assavam ou fritavam as sardinhas ou o carapau. As lancheiras para o dia seguinte já ficavam prontas na véspera! Ao outro dia era só aquecer a marmita e, mesmo frio, o manjar marchava!
Havia um escadote para subir ao 1º andar, nas águas-furtadas, onde encostadas umas às outras se encontravam as cerca de 10 camas onde se dormia, apenas com uma pequena janela para a rua. Era o ar condicionado daquela época!
Os pulmões de tão boa gente, já empoeirados do trabalho, ainda sofriam o cheiro delicioso dos sovacos suados, tão agradável como o do perfume parisiense "xulé horrible". Durante a noite havia sempre concerto em trombone de vários tons, cansados que os corpos estavam, e, no meio do ressonar, lá aparecia, por vezes, algum distraído a sonhar com a festa de verão, e sem se aperceber saudava os presentes com uns fracos foguetes sem rastilho. Tão fracos que nem as telhas, logo por cima das cabeças, sequer se moviam...
Mas chegado o sábado, era ver a alegria do Cardeal, com aquele sorriso tão característico que ainda hoje o distingue, a dar banho a todos com água fria na luxuosa cabine de duche da Tasca do Aníbal, que era um bálsamo para quem vinha da aldeia habituado a tomar banho nos tanques dos lameiros.
Pegando na mangueira, era um espetáculo ver e ouvir o Zé Cardeal a gritar:

"Abre-me esse rabo, desgraçado"... "Tira daí as mãos que te capo"... "Que andaste a fazer rapaz, que não tens nada entre-pernas?" ... "Ah macaco até te arranco os...". 
De facto, com a pressão da mangueira, ele arrancava não só as sujidades da semana, como até a pele se fosse preciso!
Foi por isso bem merecida a pequena homenagem que em 9 de Julho do ano passado, coincidindo com o lançamento do Livro do Dr. Germano Correia Botelho, se fez em Bujões a estes homens do chamado ferro velho, mas gente de alma pura e coração de ouro que ajudaram e deram as mãos a muitos Bujoenses, como a mim, e que sabemos também os recordam com saudade, pois são bem merecedores da gratidão daqueles que um dia aportaram a Lisboa, ou à Tasca do Aníbal, ou ao Casalinho da Ajuda em busca de um amigo que os encaminhasse.
No vídeo seguinte, deixamos para memória futura estes dois personagens e uma foto rara da Tasca do Aníbal, com o próprio Aníbal em destaque!
Que Deus guarde por muito tempo estes dois primos e todos aqueles Bujoenses que com músculos de ferro tinham força e vontade não só para reduzir a pó qualquer barco, como para destruir o maior barco do mundo se ele aparecesse no Cais de Xabregas e caísse nas suas mãos! Músculos de ferro e coração de ouro!



Agosto de 2012

JVPaula





2 comentários:

  1. MEMÓRIAS ...COMO É BOM TER MEMÓRIAS ...SAUDADES...TEMPOS IDOS , VIVIDOS ...É MUITO BOM TER MEMÓRIAS.

    PARABÉNS !

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  2. FOI MUITO BOM VER E LER ESTE ARTIGO SOBRE BUJOES FIQUEI MUITO EMOCIONADA E ORGULHOSA DE PERTENCER A ESTA FAMILIA MARAVILHOSA SE MEU PAI AINDA FOSSE VIVO TERIA SE EMOCIONADO TAMBEM, AO VER SUA IRMA EUFEMIA E SEU PRIMO E CUNHADO JOSE CARDEAL A SEREM HOMENAGEADOS.BEIJINHOS TIO
    ZELIA ARAUJO

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