BUJÕES E A RODA DOS ENJEITADOS

Durante largos anos, sobretudo durante os séculos dezoito e dezanove, nas chamadas "Roda dos Expostos ou Roda dos Enjeitados", milhares de crianças foram deixadas ao abandono, um pouco por todo o lado, quer em Portugal, quer em muitos países do mundo.
Ano após ano, em Igrejas ou Conventos, nas cidades, vilas ou até em aldeias, nas portas da entrada ou na RODA com mecanismo rotativo que foi montado para o efeito, o som da sineta ou de outro sinal alertava para o abandono de mais uma criança, assim entregue à proteção da Igreja que não só a recolhia, como logo a batizava, arranjando-lhe padrinho, quando não era o próprio sacerdote, e tratava de a encaminhar para quem dela tratasse, na busca de amor e carinho que logo à nascença lhe eram negados.
Sobre este drama humano muitos escritores escreveram belos romances, alguns dos quais resultaram em filmes famosos. Porém, não é isso que interessará realçar neste texto. Os dramas fazem parte da vida, mas melhor seria que problemas como este nunca tivessem existido, porque foram milhões as crianças abandonadas por todo o mundo.
Em Vila Real, como em muitas Igrejas em redor, também existiu uma RODA durante muitos anos, e no seu interior, também durante largo tempo, se encontrava sempre atenta ao toque da sineta, uma senhora que se intitulava de AMA, de quem não sabemos nada, mas sim que era a primeira pessoa  a recolher o enjeitado ou enjeitada, ali deixado, recebendo-o certamente com o seu sorriso afável e enternecedor, estendendo-lhe os braços como em tempos fizera Jesus, segundo o Apóstolo Lucas:
"Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se parecem com elas. Em verdade vos declaro: quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha, nele não entrará." (Lucas 18,15-17)
Para se ter uma pequena ideia das dimensões que atingiu tal fenómeno, imagine-se que só no espaço de um ano, entre Janeiro de 1824 e Janeiro de 1825, foram abandonadas na RODA de Vila Real 343 crianças,  batizadas na Igreja de São Pedro e ali recolhidas do interior do equipamento rotativo onde eram deixadas, algumas com roupas ou marcas que um dia permitissem a sua identificação, caso a mãe a quisesse resgatar, muito embora fossem poucos esses casos.
Sim, quase a média de uma criança por noite, porque era às escondidas e sob a escuridão que tal ato de abandono decorria. 
E nas outras Igrejas em redor, como por exemplo na Régua, ou em povoações mais pequenas, desde que houvesse Roda nas capelas ou Igrejas, o problema teve igual dimensão, embora não atingindo tais números impressionantes. E também há inúmeros casos de abandonos de crianças à porta de determinadas pessoas em aldeias da região, (em Bujões encontrámos  um só caso) mas houve vários  em Vila Seca de Poiares, registados à porta de residentes, porque era uma aldeia fácil de atravessar sem que o autor ou autora desse ato tão desumano fosse identificada.
Não queremos deixar aqui expressa qualquer critica, e haveria muitas, mas sim louvar aqueles da nossa aldeia de BUJÕES, que mesmo vivendo no meio de grandes dificuldades, caminhavam a pé, tantas vezes em pleno Inverno, e se dirigiam à Comissão Distrital de Vila Real, não para abandonar qualquer criança, mas sim de coração aberto para  recolher e cuidar de algumas, trazendo-as para junto de si, num gesto admirável que revela a bondade de vários dos nossos antepassados. Também houve quem o fizesse na qualidade de ama, recebendo por isso  uma pequena importância como meio de justa compensação pelo assumir de tamanha responsabilidade.
Muitas vezes, digamos mesmo demasiadas vezes, tão lindo propósito não obteve os melhores resultados, acabando as pobres crianças enjeitadas por falecer, mas foram várias as que foram recolhidas da RODA e entregues a Bujoenses e que venceram o destino, cresceram, casaram, foram pais, ali viveram a sua vida marcada desde logo de forma cruel ao nascer, alguns até emigraram, sendo as amas ou as mães adotivas personagens anónimos de gestos que nos permitem afirmar que aquelas palavras de Cristo sempre tiveram eco no coração das gentes da nossa aldeia.
Aqui deixamos uma pequena referência a alguns dos nomes dos que passaram por Bujões e que aí viveram ou morreram, todos eles há muitos e muitos anos, recebendo então o carinho, o amor e a solidariedade de quem tomou o lugar daqueles que não quiseram ou não puderam cumprir o seu dever.
Obrigado a todos esses Bujoenses que amaram e sofreram por; José, Silvina, Theresa, Bernardino, Mariano, Roberto, Luísa, Carma, Antónia, Engrácia, Palmira, Phorfirio, Benta, Cleto e outros...
Aos que sobreviveram e constituíram família, existindo hoje certamente descendentes desses longínquos antepassados, interessa dizer-lhes, através deste pequeno exemplo, que o sacrifício e dedicação de alguns Bujoenses valeu apena, e nada poderá ser mais representativo do que enquadrar esses atos no lindo poema de Fernando Pessoa:

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


Uma das muitas RODAS existentes em Portugal

                                                                                                     Roda do Porto. Na fachada da Igreja o local da Roda é bem visível.


E ao terminarmos, lembramos aqui o drama de uma jovem mulher, que casou em Bujões, embora sendo de Guiães, a quem vamos chamar MARIA! Viveu há cerca de 150 anos. Teve quatro filhas de um bujoense, cujo apelido é de família conhecida.
Infelizmente todas as filhas lhe morreram pouco tempo depois de nascerem. Num gesto lindo, como linda seria a imensa ternura que tinha dentro do coração, foi à Roda de Vila Real com seu marido e adotou outra menina para assim realizar o seu sonho de partilhar tanto amor e ouvir a palavra mais querida que qualquer mulher gosta de ouvir… MÃE. 
Mas, ironia do destino, tal menina também não sobreviveu, frustrando assim o desejo desse casal em partilhar o seu carinho com alguém que, mesmo abandonada na Roda, seria a filha legítima que lhes encheria a alma de esperança e de amor. Um drama de Bujões, que dificilmente se repetirá!
Segundo soubemos, estão agora todos juntos no Céu.

Agosto de 2012
JVPaula

4 comentários:

  1. Meu bisavô Sancho foibdeixadf em 14/03/1853 na roda de vila de Santa Martha Freguesia de São Miguel de Lobrigos. Achei seu batismo pesquisando nos livros de registro de batismo digitalizados de Vila Real. Minha emoção e de meus filhos foi indescritível. Te achei, você foi enjeitado Sancho, no entanto sobreviveu, casou, teve filhos e netos, a prova sou eu. Sônia dos Santos Vieira.

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    1. Não posso deixar de a felicitar Sónia por ter conseguido através do livro de registo de baptismos dos Expostos ou Enjeitados de S. Miguel de Lobrigos encontrar o seu bisavô SANCHO, abandonado na Roda da Igreja na madrugada do dia 14 de Março de 1853. Felizmente ele conseguiu sobreviver e fugir ao destino mortal que estava reservado para a maioria dos que eram abandonados. Por sinal, o mundo é bem pequeno e veja bem que, nessa mesma freguesia, no dia 5/3/1846, casou meu trisavô António Maria Pampilhão ( depois António Maria Ventura) natural de Petelos, Tuy, Galiza, que adoptou com sua mulher Maria Igreja uma criança (Maximiano) abandonada na Roda da Igreja de São Faustino-Régua. Dez anos antes, em 1843, só naquela Roda da Régua foram abandonadas 85 crianças nesse ano e apenas 69 foram baptizadas por pais legítimos o que comprova bem o drama de tantas mães e tantas crianças logo marcadas por esse destino cruel. Eram os tempos de então que deixaram esta marca de vergonha para a humanidade.
      SANCHO não é um nome muito vulgar, mas também nos sentimos satisfeitos com a sua alegria porque D. SANCHO I foi o rei que concedeu foral à minha aldeia de BUJÕES no ano de 1191. Felicito-a por ter encontrado as suas raízes no mesmo local onde cresceram algumas das raízes que marcam a existência dos VENTURA, a minha família materna.
      Obrigado pelo seu comentário neste blogue
      José Ventura Paula

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  2. Olá, parabéns pelo registro de um passado que não podemos esquecer. Estou em busca do registro de baptismo do meu bisavô que foi batizado em São Dinis, entre 1848 e 1850, foi deixado na roda de Vila Real, mas infelizmente não encontrei o livro não esta digitalizado ou foi danificado/perdido/extraviado. Estou aguardando a resposta do arquivo distrital. De qualquer forma, seu registro me enriqueceu de informações. Parabêns!

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